Originalmente publicado em O GLOBO


Por Renée Castelo Branco

Nego Jorge bate à porta dos moradores mais velhos do Morro do Turano, na Zona Norte do Rio de Janeiro, para verificar se precisam de cesta básica. Professor de dança que viu sua renda minguar com a pandemia, Jorge sobe o morro até onde pouquíssima ajuda chega. Para levar comida. É gente que não tem internet ou não sabe usar a internet. E, hoje, qualquer ajuda ou programa de combate à fome e auxílio emergencial do governo são divulgados pela internet.

Só pensando no acesso às redes, já seria possível mapear quem precisa mais. O último Censo do IBGE, em 2010, atesta que quase 1,4 milhão de pessoas moravam em 763 favelas na cidade do Rio de Janeiro. É possível afirmar que essas aglomerações precárias cresceram. O Censo de 2020 foi cancelado. Assim, trabalhamos no escuro. Sem ter como balizar as políticas públicas.

Dados da FGV Social nos informam que 11 milhões de pessoas afundaram na pobreza extrema desde antes da pandemia. Somamos 19,1 milhões de famintos, 9% da população, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Famílias que antes viviam em casas simples, mas confortáveis, são empurradas para ocupações em terrenos baldios, sem vida digna.

Conviver com a miséria e a pobreza absoluta é insustentável sob todos os pontos de vista. Moral, ético e econômico. Quanto custa ao país um exército de miseráveis, malnutridos, fora do mercado de trabalho, sobrecarregando os serviços de saúde? Ou crianças e adolescentes que saem da escola sem saber quase nada, despreparados para trabalhar e desencantados? Sem contar que jovens em famílias famintas são mais sujeitos a entrar para o tráfico e morrer cedo. Não temos esses números e também não sabemos quanto custaria acabar com a pobreza absoluta. Mas sabemos que é possível acabar com ela.

O escritor José Falero, autor de “Os supridores”, obra impressionante da “literatura de periferia” — como está em voga referir-se a esse gênero —, desabafa na voz do personagem Pedro, nascido e criado em favela em Porto Alegre: “Causavam-lhe descontentamento os ônibus lotados, as roupas surradas, os cigarros vagabundos, a insuficiência de cobertas no inverno, a falta de um ventilador no verão, o cheiro horrível de esgoto no quintal, a casa repleta de ratos, baratas, aranhas, cupins, pulgas, carrapatos e lagartixas”.

Não será possível acabar com a pobreza absoluta sem combater as causas que fazem que perdure por gerações. Quando um grupo de profissionais experientes em trabalhos com a Unicef se reuniu para firmar um pacto destinado a mobilizar a sociedade civil, independentemente de partidos ou religião, escolheu o nome: Brasil sem Pobreza.

Vozes logo contestaram que pobreza existe em todo o mundo, sempre existirá; pensou-se em mudar para Brasil sem Miséria. Miséria, palavra dura, pesada, dói nos ouvidos. Voltou-se a Brasil sem Pobreza. “Miséria” transmite dor extrema e dá à esperança um tom de desespero. A definição de miséria é estado lastimoso, indigência, penúria. É contra isso que o pacto luta. Um país rico, diverso e criativo como o nosso não pode conviver com extremos que nos envergonham como cidadãos.

Também lutamos contra a destruição de nossas florestas, a contaminação do solo, a poluição e o assoreamento dos rios, o garimpo e o corte ilegal de madeira. Tudo isso atinge o modo de vida das populações carentes e as torna cada vez mais dependentes de ajuda, que nem sempre chega.

Arregaçamos as mangas e começamos a trabalhar com o economista Ricardo Paes de Barros. Com o apoio do Insper, PB, como é conhecido entre os amigos, está criando um indicador multifatorial de pobreza absoluta que possa servir de bússola para políticas públicas. No fim deste ano, esperamos ter os primeiros resultados. O objetivo do pacto é pensar o combate à pobreza sem tinta ideológica. Queremos mudar o pensamento corriqueiro de que pobreza absoluta é uma questão somente de renda e, por isso, muito difícil de acabar. Brasil sem Pobreza acha que dá.

*Jornalista e documentarista